20/05/2010

Imprecação pelos que amam e não são amados

[a foto , é um contraste]





eu que não tenho nenhum deus no olhar

quando encaro o infinito

que há séculos não trago comigo o agnus-dei que minha mãe

me pregava na roupa interior

que já nem uso calças com um bolso pequenino

para guardar o terço que desbulhei mil vezes



arrependo-me ao menos por hoje

do meu inveterado ateísmo

e ajoelho a orar sobre a laje fria da vida

por quantos e quantas conheço

que não vêem amor pagar-se com amor



tu que és omnisciente e sabes quanto pena

um coração desprezado

tem piedade dos que amam e não são amados

tem dó dos que se encerram na sua concha

incapazes de fitar o sol da realidade

com a alma inútil feita rosa amarfanhada

e os olhos a desfiar longos rosários de lágrimas

tem compaixão dos homens e das mulheres

que esperam em vão um sinal de assentimento

que se enganam a si próprios transformando

delongas em indícios de prometimentos

e um simples sorriso num oásis sonhado para toda a vida



tu que és omnipotente e operas prodígios

caminhas imune sobre o debrum do mar ou sobre a corola das labaredas

torce por clemência o destino dos que amargam

o gelo cortante da inútil espera

a inclemência dos ponteiros especados num eterno segundo

o gume das palavras que não falam esperança

a insónia de um leito de pedregulhos

a solidão dos que de repente ficaram no meio do sara

no olho do furacão ou foram sugados por um buraco negro

o irremediável desespero dos que querem fugir de si próprios

e não encontram nenhum lugar habitável por meia hora que seja



tu que és omnipresente e conheces todos os mapas e roteiros

e sabes onde mora a salvação e a graça e a bem-aventurança

mostra outro caminho aos que ouviram apenas advérbios de negação

e vão levados pelos pés obsessivos para a beira dos abismos

para os resguardos das pontes para os abraços do mar

e ensina-lhes também outra solução para os dedos

que não sejam o cloral a estricnina a lâmina de barba

aguça-lhes o olhar para que perfurem todas as barreiras

e os altos muros que confinam os seus horizontes

e os sitiam no último reduto do desespero



tu que és a misericórdia a caridade a imensa mansidão

e sabes multiplicar as dádivas do céu e os bens da terra

amerceia-te dos que não querem outro pão

que não seja o aconchego do outro

que não querem outra água

que não seja o límpido olhar predilecto

que não querem outras vestes

que não sejam as mãos amadas que forram as suas mãos



não queiras senhor capaz de todas as mercês

que apaziguas as tormentas quando não as levantas

que te acuse de termos fome e não nos dares o verdadeiro maná

de termos sede e não te desentranhares em ternura

de desnudos não nos cobrires de bênçãos

de desvalidos e doentes não nos visitar o enfermeiro-mor

de estrangeiros uns dos outros

não nos hospedar a terra prometida



condói-te sobretudo dos que amam platonicamente

porque são impolutos na sua química espiritual

porque não estão poluídas as suas lágrimas de tão destiladas

e têm dentro de si o grande deslumbramento da beleza

que viram no olhar que os tocou

ou no sorriso que lhes pareceu aquiescente

os seus desejos nunca se conspurcaram

e o seu íntimo foi até à recusa a verdadeira imagem

da ansiada concórdia universal



vejo agora que tu senhor és o maior dos ateus

não crês em ti próprio porque sendo o amor

não cuidas dos que são a tua imagem viva mas sofrente

os que experimentam o amor e não têm o amor

os que sofrem de amor e morrem de amor

porque tu como todos os deuses

alcandorados longe dos mortais

nada queres com a sua miserável condição

a que os abandonaste sem lenitivo

eles aturam a fogueira do próprio amor

para depois se consumirem na sua própria implosão

amar e não ser amado é trazer uma granada dentro do peito



é por isso que a minha súplica se fez blasfémia

e vai ser choro e ranger de dentes

meus olhos não te procuram porque nunca te descortinarão

separo as mãos unidas de uma prece sem nexo

e na impotência que nos deixaste como herança

levo-as ao rosto para chorar amargamente

por todos os que são uma dádiva sem sentido

porque amam e amam e amam

e nunca serão amados




by Anthero Monteiro



4 comentários:

Anthero Monteiro disse...

Belíssima imagem, muito sugestiva...
Quanto ao texto poético, sou suspeitíssimo...
Muito, muito obrigado pela dádiva que é para todos nós este blogue.

anth

Mir disse...

:+)!!

Fico contente...

Um beijinho muito grande

princesa... disse...

Devo confessar que a fotografia da menina me intimida, tem um olhar muito penetrante! Chego a ter medo...

Quanto ao poema, não sei quem foi o poeta mas, dou-lhe os meus Parabéns pela escrita e pela excelente escolha do tema.

Mir disse...

lololol princezinha!

eu adorei a foto, achei que só podia ser mesmo esta... faz um bonito contraste, principalmente, com a primeira estrofe, mas sim o olhar é penetrante... quanto ao poeta ehehehe... vamos com certeza ainda ler, muitos poemas, assim,tão bonitos quanto este!!!

beijo muito grande