27/05/2016

Ver no Escuro



É agora, que te foste embora, o momento
em que nos conhecemos melhor.
É agora, entre este espaço vazio que
vai da minha boca à tua, que está toda
a verdade desembocada em glória.

Aqui estou eu sentada a perder-te.
Aqui estou eu a ser-nos aos dois enquanto
ainda é noite, a adiar que seja amanhã
quando vou rebentar como as lâmpadas.
Aqui estou eu a escrever enquanto não
encontro o meu corpo que foi contigo
atirado ao teu ombro em casaco pesado
sem etiqueta
por favor não engomes.


Depois não seremos mais nada para além
deste lamber de chão.
Seremos apenas passado recente,
passado passado, passado passadíssimo
uma folga chata que ficou mal esticada.
Depois não haverá o teu rasto entre as
portas, nem o eco do teu cheiro, nem o teu
estremecimento nocturno, que era também o meu.


E eu tenho tanta pena de estar aqui a perder-te
porque o meu amor não morre quando quero
o meu amor é Jesus ressuscitado a cada prego
tão novo como uma metáfora
atinado como um rebanho quente
erguido em dedos longos,
desdobrado.


E agora sou uma esponja e encolho
porque ainda estamos a reduzir-nos
em violentíssimo eco

Adeus, eus, eus

Mas amanhã não.
Amanhã não haverá retorno nem cola que
nos junte as vidas
porque o amor é agora, neste preciso instante
em que levam o lixo, em que a minha cara
encolhe e se enruga em sal, em que sou feia,
em que não estás.


O amor é agora, mesmo quando somos as
palavras esmagadas contra os vidros e a
violência lindíssima de dois corpos mirrados
de costas voltadas.

Amanhã não.
Amanhã celebro em brados cegos o
futuro calmo da secura de um rio.




**********************


Se te esqueceres de mim
criarei a dança das sibilas cintilantes
usarei um cinto de amargura e uma
camisolinha de gelo
e gravarei nos pés o contrário do
teu caminho.


Abrirei uma caverna em peito onde
possa gritar a tua imagem como o
nosso sangue extinto
e iremos desta vida à outra com o
desamor em braços,
desmaiados em insucesso.


Ainda assim, levo-te entre as pernas
em vergonhosa ascendência.
Criei-te uma dinastia de alturas
inconfessáveis
e ninguém sabe
ninguém sabe.


Dar-te-ei tudo o que em vida errada
me for permitido até à exaustão das
causas possíveis:
um rim, uma carta lambida,
e todo o mar que me atravesse.



Neste quartinho-ilha onde nadamos
sem milagres, saberei quando te
esqueceres de mim:
terei a certeza pelo chilrear inanimado
das mulheres
quando passar por elas na rua.

**************



Quando for embora não deixarei
migalha de mim.
Levarei o cheiro a desorientada
melancolia e desastre
e não deixarei um cabelo que seja.
Levarei comigo as gatas e os livros,
a roupa deixo-a às minhas amigas,
o umbigo, à minha mãe.


Vou e não esqueço.


Partirei sem as orquídeas que
me assombram delicadeza
e sem os cactos que me superam
em estirpe.
Vou aberta como um eterno retorno
e na simplicidade de um bebé que
procura um sítio onde se sentar.


Aqui há a desactivação das almas à
nascença e a ovação aos tristes.
Há a exultação do silêncio profundo
e a altivez congratulada dos néscios.
Há o sangue cansado dos bichos
e a preparação para a fuga da terra.
Aqui há a terra sem terra e a saliência
do teu ombro morto.

Há orelhas frias que soluçam tarde
e uma cova a dizer adeus.


Por isso vou embora no sentido inverso
ao das árvores
numa descida clandestina à mulher que
morreu em ondas.
Vou embora e deixo o meu vinco que
não morre mesmo que me passem com
alcatrão fresco e me estiquem.


Deixo apenas a verdade dos meus
olhos quando pendurados na janela,
a sorrir mundos
deixo as abelhinhas doidas que ignoraram
o meu salto,
e o riso da desistência
porque ainda preciso de mim.




in Ver no Escuro by Cláudia R. Sampaio

19/05/2016

hoje




“When I despair, I remember that all through history the way of truth and love have always won. There have been tyrants and murderers, and for a time, they can seem invincible, but in the end, they always fall. Think of it - always.”


by Mahatma Gandhi








14/05/2016

Lovesong

E só agora
tu e eu sabemos
da urgência do
amor.

Polido,
sem fissuras.

 by Eduardo Pitta




.
You make me feel like I am free again
You make me feel like I am clean again

However far away
I will always love you
However long I stay
I will always love you
Whatever words I say
I will always love you




The Cure - Lovesong

12/05/2016

Joan Of Arc



Now the flames they followed Joan of Arc
as she came riding through the dark;
no moon to keep her armour bright,
no man to get her through this very smoky night.
She said, "I'm tired of the war,
I want the kind of work I had before,
a wedding dress or something white
to wear upon my swollen appetite."
Well, I'm glad to hear you talk this way,
you know I've watched you riding every day
and something in me yearns to win
such a cold and lonesome heroine.
"And who are you?" she sternly spoke
to the one beneath the smoke.
"Why, I'm fire," he replied,
"And I love your solitude, I love your pride."

"Then fire, make your body cold,
I'm going to give you mine to hold,"
saying this she climbed inside
to be his one, to be his only bride.
And deep into his fiery heart
he took the dust of Joan of Arc,
and high above the wedding guests
he hung the ashes of her wedding dress.

It was deep into his fiery heart
he took the dust of Joan of Arc,
and then she clearly understood
if he was fire, oh then she must be wood.
I saw her wince, I saw her cry,
I saw the glory in her eye.
Myself I long for love and light,
but must it come so cruel, and oh so bright?



by Leonard Cohen




 

07/05/2016

É QUASE NOITE


Falar tão baixo que ninguém ouça, escrever tão pequeno que ninguém leia, esvaziar tanto os ouvidos e os olhos que me achem sumida no chão que piso.

***

Ao longo de todo o trajecto há pássaros caídos. E este som, só meu, enchendo as ruas por onde passo com as palavras que não escrevi e que temo nunca escrever. Casa será sempre este espaço menor em que dou outros nomes à cidade, não vá a manhã surpreender-me e o espelho contar-me o número de paralelos com que o meu rosto foi reconstruído a partir desta noite.

***

Voltar só é possível até um certo ponto. Regressa-se e regressa-se à possibilidade possível, e o que não é possível, o voltar à forma original, embrionária de colo materno, mantém-se na linha questionável deste horizonte que os braços podados das videiras já não podem alcançar. Resta-lhes isto, o corpo metafórico de uma ideia que apenas existe como forma de dizer: — já é noite há tanto tempo.


***

Não sei de músicas que acalmem os pássaros, nem sei de pássaros que amanheçam no sangue ou de beijos dados no pulso para chegarem ao coração. Não sei de nada que tenha voo, cor de tempo – vermelho, sempre vermelho, como odeio vermelho –, ou de como se nasce das pedras. Muito embora tenha caminhado sobre elas, pressinta cores dentro do peito e goste de olhar muito acima da copa das árvores só pela ideia de que, ao contrário dos pássaros, as estrelas me durarão o futuro todo. E se me falam de músicas, sangue ou beijos, sorrio e fecho o rosto, porque nunca gostei do que não me durasse mais do que este instante



by  Beatriz Hierro Lopes

06/05/2016

resultado desta insónia absurda.

e volto uma vez mais aqui
este olhar para dentro
onde te encontro
onde me encontro

doi.


tempo é vida.
qt tempo passou?!
qt tempo mais precisa passar?!

e saber-nos?!
ñ tenho resposta.
nem sei prever...
nem quero.

e o sonho?!
só sonho o que sei.
e se vamos só pelo sonho
se o sonho já o é
porque não o somos?!

o que falhou?!
língua.


explica-me.
mostra-me.
diz-me.
Como chegar?!
Responde.
mas com os pés pregados ao chão.
e com o tempo de hoje.


by mir